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Fevereiro 12, 2019

Pacote de Moro estimula um Estado ainda mais violento

Para o subcoordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Ricardo André de Souza, projeto “preocupa porque, em síntese, viola direitos e garantias fundamentais”

Medidas como a ampliação das possibilidades de legítima defesa para agentes de segurança pública e a instituição do acordo penal sem o devido processo legal podem aumentar ainda mais a violência do Estado e agravar o problema do encarceramento em massa. Essa é a avaliação do subcoordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) Ricardo André de Souza.

Para ele, o conjunto de medidas anunciado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, “amplia a possibilidade de violência do Estado contra o indivíduo, contra o cidadão”, destacando que, na sua análise, o projeto “viola princípios constitucionais, cláusulas pétreas, direitos e garantias fundamentais”.

Entre as iniciativas criticadas por Souza está a instituição do acordo penal, baseado no plea bargainestadunidense. “Vai ter aí uma possibilidade ampliada de coação do acusado e do suspeito para a imposição de uma pena, que pode ser privativa de liberdade sem o devido processo legal.”

Confira os principais trechos da entrevista abaixo:

Os problemas do pacote

O pacote tem muitos problemas, se pudesse definir em uma palavra esse conjunto de medidas, eu diria que se trata de uma proposta violenta. Amplia a possibilidade de violência do Estado contra o indivíduo, contra o cidadão. E por quê? Porque se trata de uma proposta de alteração legislativa de impacto nacional, nossa legislação processual penal tem efeito sobre todo o Brasil. E a gente diz que (o projeto) é violento justamente porque viola princípios constitucionais, cláusulas pétreas, direitos e garantias fundamentais, como o princípio constitucional da presunção de inocência, o princípio constitucional da individualização da pena e o princípio do devido processo legal. Quando se está falando de cláusulas pétreas, não podemos nem sequer falar em flexibilização dos direitos, porque esses direitos não podem sequer ser flexibilizados. Ou eles estão sendo observados, ou estão sendo violados.

Há uma série de pontos que merecem críticas, seja pela ausência de técnica na redação, seja pela inconsequência em relação aos impactos que isso vai causar na massa carcerária brasileira – que não é pequena, pelo contrário, nós somos o terceiro país do mundo que mais prende seus cidadãos. Enquanto os Estados Unidos e China, que ocupam a primeira e segundo posição nesse ranking problemático, vêm buscando reduzir sua população carcerária, no Brasil, temos um movimento contrário.

O império da subjetividade

As propostas relativas a extensão ou ampliação do tempo de prisão em regime fechado, por exemplo, contrariam totalmente o princípio da individualização da pena quando admite a possibilidade de que um juiz, ao arrepio, ou seja, sem observar as frações legais pode fixar, discricionariamente, a sua escolha do tempo em que determinado condenado vai ficar em regime fechado ou em regime semiaberto, por exemplo. O balizamento legal vai sendo substituído pelo sentimento, pela subjetividade do juiz, e você vai perdendo as possibilidades de controle.

Desequilíbrio entre as partes

Um outro ponto que a gente critica muito, pelo completo divórcio que esse ponto tem com a própria estrutura do sistema processual penal brasileiro é a questão do acordo penal. Mais uma vez pretende-se importar um instituto sem que essa importação venha também acompanhada de diversos outros mecanismos de controle que já existem em outros países.

Na coletiva de imprensa em que apresentou esse pacote, o ministro Moro menciona o Código Italiano, mas na Itália temos, por exemplo, o juiz de garantias, existe a possibilidade de investigação criminal por parte da defesa, regulamentada. São mecanismos que, de alguma forma, equilibram o jogo de forças no momento em que você vai ter um acordo entre acusado, indivíduo e Estado, no caso, representado pelo Ministério Público.

Todos esses mecanismos tentam equilibrar esse jogo forças entre o indivíduo e o Estado. Mas a importação parcial do instituto do acordo penal vai transformar, ou vai trazer para o Brasil, uma transformação na legislação em que não se tem propriamente um acordo que pressupõe uma correlação de forças entre as partes acordantes. Vai ter aí uma possibilidade ampliada de coação do acusado e do suspeito para a imposição de uma pena, que pode ser privativa de liberdade sem o devido processo legal.

Ampliação da legítima defesa: mais violência

Poderia citar vários outros pontos, mas muitas questões que inovam e deixam de lado toda uma tradição jurídica brasileira, institutos consolidados e já cristalizados pela doutrina e pela jurisprudência, como é o caso por exemplo, da ampliação das possibilidades de legítima defesa, nos casos de excludente de licitude quando se pratica a conduta por medo, surpresa ou violenta emoção. Não que aí, nesse ponto, o legislador não possa ampliar essas possibilidades, hipóteses de legítima defesa, para enxergar situações circunstanciais em que o agente poderia de fato estar ali sobre o domínio de violenta emoção. O próprio Código de Processo Penal já traz essa possibilidade da violência emoção como causa de diminuição da pena, mas não como excludente de licitude.

O pecado do projeto nesse ponto é que ele visa resguardar, inclusive expressamente, o agente de segurança pública. E por que que a gente fala que isso é um pecado, um erro, um equívoco do projeto? Porque é esse agente de segurança pública que deve ser preparado justamente para agir sem medo, sem se mostrar assustado, para dominar as suas emoções diante de uma situação e conflito e de confronto.

Mas me parece ser a tônica do projeto, que inclusive é omisso no que diz respeito a medidas relacionadas a uma melhor capacidade de investigação da Polícia e de inteligência policial, se ressente de medidas nesse sentido e, por outro lado, amplia e fomenta as possibilidades de atuação do Estado de maneira violenta. E aí não quero nem falar que fomenta a atuação da polícia de maneira violenta, porque é o Estado de maneira geral que terá, de maneira ampliada, suas possibilidades de exercício da violência contra o cidadão.

Um juiz que decreta uma prisão preventiva, ou que amplia o prazo de cumprimento de pena em um regime inicial fechado, por exemplo, pratica uma ato que é, evidentemente, violento contra aquele cidadão. É claro que é uma violência legítima, amparada na legislação, mas o Legislativo, ao acolher, ou caso venha a acolher esse tipo de proposta, estará também colocando mais um tijolo na construção de um Estado violento, autoritário.

E não se pode dizer que o projeto não tenha viés. Tem, evidentemente, um nítido viés ideológico e é algo que sempre foi criticado pelo governo que foi eleito por criticar esse tipo de viés. Mas quando se analisa os termos do pacote, está impregnado de um certo viés ideológico.

STF e jurisprudência

O projeto trata de temas qua já foram julgados reiteradamente pelo Supremo Tribunal Federal em sentido contrário ao que consta das propostas, inclusive, talvez o tema agora mais quente, é o da possibilidade de execução antecipada da pena a partir de uma decisão de órgão colegiado. Esse tema, todos sabem, está pautado para que o STF decida em abril, e o projeto traz uma alteração de um dispositivo sobre o qual a Corte vai analisar. Há um certo açodamento, por parte do governo federal, quando o Supremo está às portas de revisitar essa matéria e dar uma solução definitiva para essa questão.

Videoconferência

Outro ponto que se destaca como violador de direitos processuais é a possibilidade, quase tornando regra, de utilização em larga escala da videoconferência. Não só de modo excepcional, mas de maneira corriqueira, afastando o acusado do juiz, da sala de audiências e, em última análise, de seu próprio defensor. Muito embora se tenha uma tecnologia capaz de fazer com que o acusado esteja presente ao ato em imagens, por vídeo, pela legislação atual e pela própria principiologia do processo penal isso deve ser excepcional, não a regra. Pelo texto do projeto há a possibilidade de que isso não seja usado de maneira excepcional, mas em larga escala.

Aliás, essa tem sido a tônica do nosso sistema de justiça criminal que as propostas aprofundam, a transformação daquilo que é exceção em regra. Já vivemos isso em relação às prisões provisórias, hoje o sistema de justiça criminal no Brasil funciona basicamente a partir do flagrante. Não tem investigação, inteligência policial e as prisões em flagrante são convertidas em prisões preventivas. A própria imprensa já trata, quando fala em prisão preventiva, se referindo àquela para a qual não tem prazo para a pessoa sair. E o projeto amplia essas possibilidades, inclusive vedando a liberdade provisória em situações nas quais o STF já decidiu em sentido contrário.

Um projeto sem participação

(O pacote) viola o princípio constitucional da presunção de inocência, o princípio da individualização da pena, tem propostas que violam  o princípio do devido processo legal, além de introduzir muito subjetivismo e conceitos jurídicos indeterminados, o que certamente traz dificuldades na aplicação dessas inovações, sendo certo que, quando se tem uma série de leis, no caos, 14 diplomas legais mudados, dentre eles o Código Eleitoral, o de Processo Penal, o Penal, a Lei de crimes Hediondos, a Lei de Execuções Penais.

Todas essas modificações, em especial as do Código Penal e do Código de Processo Penal, que são as linhas mestras de atuação do sistema de justiça criminal no Brasil, em um projeto de lei que passa ao largo das discussões que existem no Parlamento sobre reforma dos dois códigos. Isso leva a um risco muito grande de desarmonia do sistema, porque se introduz um dispositivo em um sentido aqui, quando se tem todo um ordenamento no sentido contrário. Para além dessas críticas ao conteúdo do projeto, é preciso pontuar uma crítica à própria forma como foi apresentado, fora do ambiente adequado.

Acordo penal

As diferentes realidades da Defensoria Pública no território nacional geram uma dificuldade maior na defesa dessas pessoas. No estado do Rio de Janeiro, a Defensoria é estruturada e tem defensores em todas as comarcas, mas isso não é uma realidade de todo o país. Tem defensorias que são muito incipientes ainda. A despeito de haver uma determinação legal no sentido de que haja defensores públicos em todas as comarcas, isso ainda não foi implementado, e quando não tem uma defesa pública forte, estruturada, mormente considerando que a maioria das pessoas processadas pelo sistema de justiça criminal tem um perfil muito claro, são vulneráveis, jovens, negros, pobres, de baixa escolaridade, esse público é fundamentalmente assistido pela Defensoria Pública.

Quando passa a haver a possibilidade de um acordo que não vai passar pelo crivo do Judiciário, somente pelo modo homologatório, onde não vai haver produção de provas e de contraprovas, em que um procedimento no qual prevalece a confissão e a palavra do acusado e a homologação do acordo tem o efeito de uma sentença penal condenatória sem o devido processo legal, é óbvio que temos um problema. Seja de empoderamento desmesurado do Estado-acusação, no caso o Ministério Público, seja, por outro lado, de esvaziamento das possibilidades de defesa pro parte do indivíduo. Por isso que volto a dizer: o projeto, em linhas gerais, é violador de princípios constitucionais e, em última análise, gerador de violência de Estado contra o indivíduo, brasileiros e brasileiras. A violação em relação ao devido processo legal me parece bastante evidente.

Embora haja alguma divergência em relação às noções do devido processo legal, nos EUA o acordo penal responde por mais de 90% das penas aplicadas. As pessoas se declaram culpadas, na maioria das vezes, e já se detectou que o acordo penal é o grande culpado pelo encarceramento em massa, além da questão racial que é muito forte, como no Brasil. Na verdade os dois países têm muitos pontos em comum em termos geopolítico, de população, território etc, mas a importação de certos institutos, do acordo penal em especial, parece esquecer que a experiência estadunidense demonstra que esse tipo de expediente é o principal responsável pelo encarceramento em massa que aconteceu naquele país, como se já não tivéssemos esse problema aqui também.

Embora esse projeto não surpreenda, pela própria tônica do que foi dito na campanha, preocupa. Preocupa pela falta de técnica, pela importação parcial de institutos que não guardam harmonia com o sistema de justiça criminal no Brasil, por estar sendo feito de maneira açodada e fora do ambiente próprio. E preocupa sobretudo porque, em síntese, viola direitos e garantias fundamentais.

Fonte: www.redebrasilatual.com.br

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